Os benandanti (vocabulário italiano), traduzido como “andarilhos do bem”, eram um grupo de feiticeiros praticantes de um culto de fertilidade ao longo dos séculos XVI a XVIII. Atuantes em Friul, muitos viviam em Brazzano, Iassico, Cormons, Gorizia e Cividale. [1] Ganharam notoriedade pela primeira vez na inquisição de Aquilea, parte da inquisição romana com jurisdição no território em 1575.
O culto realizado por esses homens foi genuinamente popular e, com o passar dos anos e sob pressão dos inquisidores, se transformou e assumiu lineamentos da feitiçaria tradicional. Por conta dessa defasagem - imagem proposta pelos juízes e pelos acusados, que ocorreram ao longo de épocas; a partir da conclusão de cultos verdadeiramente populares, os processos desse grupo resultaram em um testemunho para a recuperação do pensamento camponês desses séculos.
Ao longo da consolidação dos benandanti em feiticeiros, suas reuniões noturnas transformaram-se no que foi denominado sabá diabólico, “com a sua sequela de tempestades e destruições”.[2]
Os benandanti seguiam um homem que eles acreditavam ser enviado por Deus e a ele obedecem; falam também em deuses de forma generalizada. Esse capitão, enviado por Deus, lhe promete o paraíso após a morte. Além disso, possuem um juramento secreto que deve ser seguido à risca – caso contrário, sofrem duras punições corporais. [3]
Entram aos vinte anos e lhes é permitido sair aos quarenta. Fazem parte desse grupo aqueles que “nasceram empelicados”, ou seja, quando nascem sem o rompimento da bolsa amniótica, e quando completam vinte anos, “são chamados ao som do tambor que chama os soldados, e nós temos de andar”.[4] Esse pelico é o que os une e ele está ligado ao mundo das almas errantes, dos mortos prematuros: um lugar de passagem, um caminho entre o mundo deles e o mundo dos vivos. Na visão benandanti, ele é necessário para partir.[5] É no vale do Josefá aonde todos, quando mortos, irão se reunir.[6]
Lutam pelos frutos da terra e o sucesso é o fator determinante para a abundância do ano em termos da colheita. Além disso, em suas lutas, combatem pelo trigo, cereais, colheitas miúdas e vinhos.[4] São realizados rituais para o combate das bruxas quatro vezes ao ano.[7]Muitas delas dizem temer os benandanti.[1]
Suas identidades não poderiam ser reveladas – e, se o fizessem, sofreriam, novamente, punições corporais.[8]
Esses homens afirmam ser o contrário de bruxas e feiticeiros e combater seus desígnios maléficos e curar suas vítimas.[9] Ademais, contra os feiticeiros, dizem serem defensores da fé cristã. Entretanto, posteriormente, adquirem praticas que se assemelham aos feiticeiros.[10]
Ao longo da transformação dos benandanti, com o compromisso diabólico atenuado, por seu comportamento contraditório, deixam de ser objeto de perseguição dos inquisidores e dos ódios das bruxas, para transformarem-se, finalmente, em feiticeiros.[11] Além disso, não se apresentam mais como “defensores das crianças e das colheitas”, e sim focam para o poder de feitiços, realizando-os e desfazendo-os e; quando se tornaram feiticeiros, tardiamente, já não foram mais perseguidos pela inquisição.
A respeito da iniciação benandanti, não há uma resposta definitiva, apenas grande divergência entre as testemunhas.[12]
Nestes cultos, há a questão dos espíritos. É levantada a hipótese de que ou são epiléticos, histéricos, ou sofrem de doenças nervosas; ou as alucinações são causadas por substâncias soporíferas ou estuporantes. Gasparutto e Moduco, primeiros benandanti a serem interrogados, também falam sobre sonos profundos; esses, os tornam insensíveis, fazendo seu espirito sair do corpo e, se o corpo for virado para baixo enquanto o espirito estiver para fora, esse não consegue retornar.[13]
Além disso, não se untavam, diferente das bruxas. Há também o ritual aonde apedrejam um boneco e o expulsam da aldeia (o boneco seria a Morte ou a Bruxa).
Há também a questão da letargia. Era procurada como um meio para chegar ao mundo “dos mortos e espíritos que erram sem descanso sobre a terra, os quais, na versão agraria do culto, conservam os traços terríveis da temível caça selvagem, enquanto os fúnebres assumem aspecto um mais ordenado e conforme a tradição cristã da procissão”. Se esses mesmos espíritos não retornam, se tornam “malandanti”.[14]
Na noite da quinta-feira dos Quatro Tempos (semana de santa Lúcia em dezembro, quarta-feira de cinzas, domingo de Pentecostes e no domingo de Exaltação da Santa Cruz em setembro)[1], os benandanti saem para proteger os frutos da terra das bruxas e dos feiticeiros que, segundo eles, atrapalham a fertilidade dos campos. Tal festividade fazia parte de um antigo calendário agrário e passou a fazer parte do calendário cristão, e simbolizava a crise sazonal, “a perigosa passagem da velha para a nova estação, com as suas promessas de semeadura, colheitas, messes e vindimas”.[15]
Como explica Moduco, há uma clara divergência entre o modo de vida dos benandanti e dos malandanti. Os malandanti eram bruxos que, montados nos tonéis, depois de beber com um bornal, assim como os feiticeiros, urinavam nos tonéis. [16]
Além disso, quando um indivíduo é assassinado antes do tempo previsto de sua morte, seu espírito torna-se malandanti até alcançar o tempo certo de morrer.[17]
As mulheres benandanti que veem os mortos compartilhavam da mesma crença que os homens benandanti; entretanto, essas mulheres curavam doenças e viam espíritos, enquanto os benandanti agrários combatiam pela efetivação da colheita, contra bruxas e feiticeiros.
Segundo o pároco de Brazzano, Bartolomeo Sgabarizza, um dos benandanti, Paolo Gasparutto, dizia curar os enfeitiçados e “vagabundear à noite com feiticeiros e duendes”, além disso, “na quinta-feira de cada um dos Quatro Tempos do ano, eles deviam andar junto com esses feiticeiros por diversos campos, como em Cormons, diante da igreja de Iassico, e até pelo campo de Verona”, onde “combatiam, brincavam, pulavam e cavalgavam diversos animais e faziam diversas coisas entre si (…)”. Diante disso, o pároco conclui que alguns desses feiticeiros, como Gasparutto, são bons e chamados de vagabundos – na sua linguagem, benandanti, que impedem o mal; entretanto, também existem outros feiticeiros que realizam o mal. Para identificá-los, homens e mulheres benandanti, os maus andam com ramos de sorgo e os bons com ramos de erva-doce.[18]
Quando Gasparutto é convocado pelo inquisidor frei Felice da Montefalco para testemunhar, diz não conhecer nenhum feiticeiro ou benandanti, além de afirmar que também não é um deles.
Gasparutto é encarcerado após o interrogatório.
No mesmo dia, Battista Moduco, apelidado de “Perna Firme”, é interrogado. Quando perguntado a respeito de feiticeiros e benandanti, responde: “não sei se existem feiticeiros; quanto os benandanti, o único que conheço sou eu” e que “dos outros não lhe posso falar porque não posso ir contra a vontade divina”.
Maduco é posto em liberdade por frei Felice ao fim do interrogatório.[19]
Ao serem chamados, posteriormente, pelo Santo Ofício, em 1581, Gasparutto e Moduco são absolvidos de excomunhão maior, mas pegam 6 meses de cárcere, além de orações e penitencias a serem cumpridas ao longo do ano.
Os testemunhos, assim como informações modificadas posteriormente ao longo de alguns decênios, levam a conclusão de que os benandanti constituíram “uma verdadeira seita, organizada militarmente em torno de um capitão e ligada por um compromisso de segredo; vínculo bastante fraco, que os benandanti infringem continuamente...” e ligam-se por um elemento comum, que é terem nascido com o pelico (envolvidos na membrana amniótica, o que é considerado raro).[20] Os processos contra Gasparutto e Moduco foram os primeiros de uma longa lista de processos inquisitórios contra os benandanti.[21] Entretanto, entre 1575-1619, nenhum caso contra benandanti, tirando os dois citados anteriormente, foi levado até o fim; pois não era fácil para os inquisidores achar proposições de caráter herético nas confissões desses homens.[22]
BURNS, Wiliam. Witch Hunts in Europe and America: An Encyclopedia. Greenwood Publishing Group, 2003.
GINZBURG, Carlo. "Os, Andarilhos do Bem: feitiçaria a cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Tradução de Jônatas Batista Neto.