Estranheza ou estranhamento (do latim extraneus, extrâneo, estrangeiro, remetendo a outro lugar, quase equivalente de alienus, alheio, alienígena, também "de outro lugar"[1][2][3]), é a experiência psicológica de um evento ou indivíduo que não é simplesmente misterioso, mas confuso ou assustador com um grau de familiaridade.[4] Este fenômeno é usado para descrever incidentes em que algo ou evento familiar é encontrado em um contexto perturbador, misterioso ou tabu.[5][6]
O termo já estava presente na obra de E. T. A. Hoffmann (1776–1822), como um conceito da estética.[7][8] Ernst Jentsch expôs o conceito do estranho, mais tarde elaborado por Sigmund Freud em seu ensaio de 1919 "Das Unheimliche", que explora o caráter inquietante de bonecos e bonecos de cera.[9] Nesse contexto da psicanálise de Freud, o termo unheimlich (em alemão) foi variadamente traduzido em português como o inquietante, o estranho familiar ou a inquietante estranheza,[10] referindo-se a algo que suscita angústia, confusão ou terror, explicados como remontando a algo primordialmente conhecido segundo sua metapsicologia. Desde então, o conceito foi adotado por uma variedade de pensadores e teóricos, como no vale da estranheza pelo roboticista Masahiro Mori[11] e o conceito de abjeção de Julia Kristeva.[12]
O filósofo F. W. J. Schelling levantou a questão do estranho em seu tardio Philosophie der Mythologie de 1837, postulando que a clareza homérica foi construída sobre uma repressão prévia do estranho.[13]
No manuscrito A Vontade de Poder, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche refere-se ao niilismo como "o mais estranho de todos os convidados". Heidegger também analisa o uso do termo unheimlich nesse contexto.[14]
O estranho foi explorado psicologicamente pela primeira vez por Ernst Jentsch em um ensaio de 1906, Sobre a Psicologia do Estranho. Jentsch define o Estranho como: sendo um produto de "...incerteza intelectual; de modo que o estranho seria sempre, por assim dizer, algo em que não se conhece como proceder sobre. Quanto melhor orientada em seu ambiente uma pessoa é, menos prontamente ela terá a impressão de algo estranho em relação aos objetos e eventos nele contidos."[15] Ele expande seu uso na ficção:
Não posso pensar – e espero que a maioria dos leitores da história concordem comigo – que o tema da boneca Olympia, que, segundo todas as aparências, é um ser vivo, seja de qualquer forma o único, ou mesmo o mais importante, elemento que deva ser ser responsabilizado pela atmosfera de estranheza sem paralelo evocada pela história.[16]
Assim, Jentsch enfatiza que, na literatura, o dispositivo narrativo empregado para produzir uma sensação perturbadora é usado por alguns romancistas, com figuras cuja natureza (animada ou não, automática ou não) não é esclarecida, deixando o leitor com uma sutil impressão, em dúvida e incapaz de decidir. Ele identifica o escritor alemão E. T. A. Hoffmann como um escritor que usa efeitos estranhos em sua obra, concentrando-se especificamente na história de Hoffmann O Homem da Areia, que apresenta uma boneca realista, Olympia.[16]
Ele reformula também o conceito para a psiquiatria. Efeitos perturbadores são geralmente obtidos quando o observador está colocado em presença da repetição contínua, "automática", da mesma situação, a exemplo de um mesmo movimento. Uma vez que a situação ou o objeto perturbador tem conotações familiares e, ao mesmo tempo, estranhas produz-se uma incerteza intelectual, que, na psicologia do século XX, seria definida como uma dissonância cognitiva no sujeito que a experimenta. Assim Jentsch explicava a sensação de perturbação que algumas pessoas experimentam antes de uma crise epiléptica ou de manifestações de loucura.[16]
O conceito de Estranho foi posteriormente elaborado e desenvolvido por Sigmund Freud em seu ensaio de 1919 "Das Unheimliche", que também se baseia no trabalho de Hoffmann (a quem Freud considera o "mestre incomparável do estranho na literatura"). No entanto, ele critica a crença de Jentsch de que Olympia é o elemento central e misterioso do conto de Hoffmann:[16]
O que mais nos interessa neste longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes de significado a palavraheimlich exibe um que é idêntico ao seu oposto, unheimlich. O que é heimlich passa então a ser unheimlich. [...] Em geral somos lembrados que a palavra heimlich não é inequívoca, mas pertence a dois conjuntos de ideias, que, sem serem contraditórias, são ainda muito diferentes: por um lado, significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e mantido fora da vista. Unheimlich é habitualmente usado, dizem-nos, sendo o contrário apenas do primeiro significado de heimlich, e não do segundo. [...] Por outro lado, notamos que Schelling diz algo que lança uma luz bastante nova sobre o conceito de Unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo ele, é unheimlich tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à tona.[...]
Um estudo de sonhos, fantasias e mitos nos ensinou que a ansiedade em relação aos olhos, o medo de ficar cego [formando um tema central em O Homem da Areia], muitas vezes é um substituto suficiente para o medo de ser castrado. A autocegueira do criminoso mítico, Édipo, foi simplesmente uma forma mitigada da punição da castração – a única punição que lhe foi adequada pela lex talionis. [...] Todas as outras dúvidas são eliminadas quando aprendemos os detalhes de seu 'complexo de castração' a partir da análise de pacientes neuróticos, e percebemos sua imensa importância em sua vida mental.[16]
Em vez disso, Freud recorre a um elemento totalmente diferente da história, a saber, "a ideia de ter os olhos roubados", como sendo o "exemplo mais impressionante de estranheza" na história. Ele se concentra nos olhos e em sua semelhança com a ansiedade de castração masculina no restante de seu ensaio e como essa ansiedade pode levar o público masculino a sentir o estranho devido à ideia de que sua masculinidade é roubada, o que é ilustrado por Freud como um ponto central contribuinte para o medo masculino.[16]
Freud prossegue, no restante do ensaio, identificando efeitos estranhos que resultam de instâncias de "repetição da mesma coisa", ligando o conceito ao da compulsão à repetição.[17] Ele inclui incidentes em que alguém se perde e acidentalmente refaz seus passos, e casos em que números aleatórios se repetem, aparentemente significativos. Ele também discute a natureza estranha do conceito de "duplo" de Otto Rank.[16]
Freud relata especificamente um aspecto do estranho derivado da etimologia alemã. Ao contrastar o adjetivo alemão unheimlich com sua palavra base heimlich ("oculto, escondido, em segredo"), ele propõe que o tabu social muitas vezes produz uma aura não apenas de reverência piedosa, mas ainda mais de horror e até repulsa, como o estado tabu de um item dá origem à suposição comum de que aquilo que está escondido dos olhos do público (cf. a metáfora do olho ou da visão) deve ser uma ameaça perigosa e até mesmo uma abominação – especialmente se o item escondido for obviamente ou presumivelmente de natureza sexual. Basicamente, o estranho para Freud seria o que inconscientemente lembra do próprio Id, dos impulsos proibidos e, portanto, reprimidos – especialmente quando colocados num contexto de incerteza que pode lembrar as crenças infantis na onipotência do pensamento.[18] Esses elementos estranhos são percebidos como ameaçadores pelo nosso superego dominado pela culpa edípica porque teme a castração simbólica por punição por se desviar das normas sociais. Assim, os itens e indivíduos sobre os quais se projetam os próprios impulsos reprimidos tornam-se uma ameaça muito misteriosa, monstros misteriosos e aberrações semelhantes aos demônios populares dos contos de fadas e, subsequentemente, muitas vezes se tornam bodes expiatórios culpabilizados por todos os tipos de misérias, males e calamidades percebidas.[16]
A palavra "unheimlich" em alemão é traduzida para "inconfortável", "inquietante" ou "estranho" em português. É oposto a "heimlich," que significa "familiar" ou "confortável." "Heimlich" está relacionado a "Heim," que significa "casa" em alemão, enquanto "un-" é um prefixo de negação. Portanto, "unheimlich" é algo que não é familiar e nos faz sentir desconfortáveis.
Esta palavra é também raiz da palavra Geheimnis, que pode ser traduzida como 'segredo', no sentido de algo que é da família ou que deve permanecer escondido.[19] Os anglófonos traduzem Das Unheimliche como the uncanny,[20] termo que está na ideia do Uncanny valley (Vale da estranheza), não sem relação com o conceito de Freud.[21]
"El sinistro", na tradução espanhola, "l'inquiétante étrangeté" ou l'« inquiétante familiarité » ou, ainda, l'étrange familier, na tradução francesa,[22] ou il perturbante, na tradução italiana, pode ser traduzido em português como "inquietante estranheza"[7] ou "o estranhamente familiar".[23]
Heimlich tem várias significações. É, a princípio, aquilo que faz parte da casa (häuslich), da família. Isso diz respeito à intimidade, a uma situação de tranquilidade e satisfação. Heimlich é também sinônimo de dissimulação, de segredo ou mesmo de sagrado. A parte heimlich da casa corresponde aos banheiros, uma arte heimlich está próxima à da magia. Un- é um prefixo antonímico. Logo, Unheimlich é o contrário de Heimlich, tanto no primeiro sentido como no segundo. De fato, pode corresponder a uma situação que gera mal-estar, que provoca uma certa angústia ou mesmo terror, como diante de um segredo que é revelado, quando deveria ter permanecido oculto.
Em Freud, encontra-se estabelecida, como generalidade, a concepção positivista de que o homem se encontra num estágio de desenvolvimento em que ultrapassou ou libertou-se das crenças animistas. Ora, são duas as categorias do estranho: primeira, quando “acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças”; já a segunda “provém de complexos infantis reprimidos”. Enquanto a primeira categoria ocorre quando vem à luz algo “superado”, a segunda acontece quando algo “reprimido” nos atinge, emerge. Daí, se algo está efetivamente superado, como pode vir à luz, emergir? Interessa aqui a tênue fronteira entre superação e repressão. Por um instante, Freud chega a igualar os termos, mas logo se corrige; na seqüência do parágrafo, ele próprio admite a nebulosidade dessa distinção: “Quando consideramos que as crenças primitivas relacionam-se da forma mais íntima com os complexos infantis e, na verdade, baseiam-se neles, não nos surpreenderemos muito ao descobrir que a distinção é muitas vezes nebulosa”.[24]
Em 1959, Lacan criou a palavra extimité ('extimidade'), expressão que dá a ideia de algo interior, algo pertencente ao sujeito e, ao mesmo tempo, não reconhecido como tal – o que torna o sujeito tenso e apreensivo.
O ensaio do roboticista Masahiro Mori sobre as reações humanas a entidades semelhantes às humanas, Bukimi no Tani Genshō ("Fenômeno do Vale da Estranheza"), descreve o vale da estranheza como a lacuna entre pessoas vivas familiares e suas representações inanimadas também familiares, como bonecos, fantoches, manequins, mãos protéticas e robôs androides. As entidades do vale estão entre esses dois polos de fenômenos comuns. Mori afirmou que fez a observação independentemente de Jentsch e Freud,[25] embora uma ligação tenha sido forjada por Reichardt e tradutores que consideraram o bukimi como sendo a estranheza.[26][27][28]